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GALERIA DE PROSA

 

Contos

      Vocabulário de termos regionalistas usados no conto:

 

alpragata – nome popular falado de alpercata; o mesmo que chilela, sandália.

vazante – nome falado de local com água que vaza de rio ou de maré; o mesmo que várzea.

gatuno – ladrão, larápio

escaldado – pirão escaldado; comida feita com caldo de carne e farinha.

mói de chifres – mólho de chifres; termo oral chulo, usado para discriminar alguém desgraçado ou desafortunado no matrimônio.

nera – termo reduzido de “não era”.

pra mode – expressão arcaica portuguesa, 'por amor de', que significa 'para poder'.

chinelou – verbo chinelar; o mesmo que “correr atrás apressado, batendo as chinelas”;

jacá – (ou jucá) pau usado como porrete para defesa; o mesmo que “cacete, cacetete, bastão”.

relho – (ou rei) açoite de couro para açoite dos animais.

pisa – surra, açoitamento.

cabra – termo chulo usado para designar uma pessoa. Ex: cabra da peste.

disgramado – desafortunado, infeliz, maldito.

coivara – monte de folhas e galhos de mato para ser queimado.

paiou – palhou; lugar de armazenamento de gêneros, feito geralmente de palha.

flexal – (ou frexal) parte de baixo do telhado da casa, o qual era utilizado pra pendurar ou esconder algo.

dimuin – termo popular oral para 'demônio'.

garatuja – enganação, falcatrua.

pisadas – pegadas; marcas dos pés.

arapuca – armadilha de capturar animais.

sa – abreviatura oral de senhora.

socadeira – espingarda socadeira de chumbo, arma rudimentar de fogo.

negrada – população, pessoal, povo do lugar.

história cabeluda – algo mentiroso ou irreal.

bacurotes – suínos em fase média, porcos.

miserave – termo oral da palavra miserável.

lorota – mentira, falsidade.

“pea no caboco véi” – expressão falada de “peia no caboclo velho”; significa açoitar.

 

    (Retirado de: JUNGLAS-MUNIZ, M. Prosas & Causos vol. 1)

 

 

 

        A VELA ACESA

 

     

      Quando nos vimos pela primeira vez ele era um garotinho, muito tímido como era a maioria dos colegas de nossa idade. Quase não falava. Era acostumado a correr e jogar bola num campinho perto da minha casa.

      Ele morava sozinho com sua velha mãe numa casa caindo aos pedaços. A casa, cada dia mais velha, precisava de reformas, embora nunca tivesse passado por uma depois de construída. Tinha servido de morada para seus antepassados à séculos. A mãe e ele viviam ali desde quando nasceram. Nunca se mudaram e a casa era herança de sua mãe. Talvez sobrasse os restos da casa para ele, se ela aguentasse até lá.

      Lembro-me que quase toda tarde, ele e toda sua turma de pelada falavam aos berros e, às vezes, até brigavam com os meninos da rua de cima. Aquele garoto era demais. Era magrinho mas mesmo assim ele tomava a bola com facilidade e a cada jogo parecia melhor. Ele driblava muito bem os adversários e fazia gols como ninguém.

     Ele era respeitado na escola; não pelas suas notas, que não eram lá muito boas, e sim, por ser um bom jogador. Os colegas o tratavam como herói. Quando ia haver campeonato Geraldo era o primeiro da lista. Ele realmente sabia fazer gol.

       Geraldinho, este era o seu nome conhecido pelos colegas, gostava também de nadar no rio, embora não fosse tão craque na natação. O dia estava muito quente, ele queria matar o calor e foi nadar sozinho no rio da ponte alta. O rio estava cheio e espumava como um dragão enraivecido com a força da correnteza e o volume d’água trazido pelo inverno forte.

     Geraldinho olhou aquele marzão d’água doce com ar de superioridade e ... thibum! Pulou da ponte. A correnteza era forte mas ele não se incomodava. Ele havia acabado de ganhar um jogo e tinha certeza que conseguiria ganhar mais uma partida. Mas o curso d’água era veloz e a profundidade não era pouca, e como água não tem cabelos, ele não ganhou a final.

       No dia seguinte, fui visitar Geraldinho em sua casa. Ele parecia outro, gordão e branquinho. Nem parecia aquele magrelinho maneiro que driblava qualquer um.         Os meninos disseram que ele havia tomado água demais. Era realmente uma pena que um jogador como ele, menino ainda... talvez eu nunca mais fosse nadar no rio. Podia ser perigoso. Eu tinha medo de acabar como ele e não queria ficar deitado em cima de uma mesa, vestido todo de marrom, de mãos postas todo embrulhado com uma vela acesa ao meu lado. 

 

 

          (Retirado de: JUNGLAS-MUNIZ, M. Prosas & Causos vol. 1)

 

 

 

 

          O FUMO SALVADOR

 

 

          História de defunto, alma penada e assombração é o que mais se escuta por essas redondezas. Meu avô me contava uma narrativa sobre o primeiro banco que apareceu por essas bandas, era uma leva de velhos que tinham se aposentado e se achavam ricos. Quando jovem, quase nunca viam dinheiro, e agora, com o recurso do aposento, tinham todo mês uma quantia a sua disposição no banco. Pra muitos, era uma farra! Tinha alguns que gostavam de uma birita, de queimar o dente e bebiam que viravam a perna. E como eram eles que tinham que receber a quantia na cidade, a viagem era longa, e a espera na porta do banco pra ser atendido começava no dia anterior. Muitos dormiam na fila em frente ao banco, com medo de não serem atendidos e não receberem a mamata. Outros, já levavam uma garrafinha da danada pra não passar frio noite adentro e já iam gastando por conta. Era aquela festa!

       Na porta do banco, juntavam-se os vendedores de churrasco, a afamada carne de gato com uma mucheia de farinha, que acompanhava as queimadas de dente e matava um pouco da fome dos velhos. Era muito animado, porque ali eles encontravam amigos de tempos passados, na fila que virava a noite, falando de gado, de plantação, de familiares, dos assuntos atuais e da vida alheia, que era o que mais fazia sucesso. E canhinha vai, canhinha vem, faziam negócios: trocas de terrenos, venda de algodão e gêneros, compra de animal, e muito mais. A noite passava e ninguém nem notava, tamanha era a animação e o movimento dos participantes.

       Quando o dia amanhecia, um providencial café preto e forte, à moda da época, era o desjejum favorito. Quando o banco abria, era aquela alegria! E quando recebiam o dinheiro, a alegria era em dobro. Então, todos se espalhavam no mercado pagando seus fornecimentos, seus fiados do mês, comprando tudo que queriam e empurrando dentro de um surrão, um saco velho de estopa, pra levarem pra casa. Iam também na feira e se abasteciam de tudo que podiam carregar pra seu consumo em casa. Aqueles mais avexados, compravam logo e pegavam o caminho de casa, pois a maioria andava a pé e tinha que chegar ainda com o dia claro. Outros, de mão aberta, se entertiam com os amigos, pois quando se tem dinheiro, aparecem amigos de todo lado, até gastar um bom bocado; era como urubu na carniça!

      O certo é que, nessa animação, surgiu o velho Onofre. Um velho meio franzino, pouco corpo, estatura baixa, parença de um menino assim nos seus treze anos. Morava lá pras bandas do Jacuri, passando pela grota da Muriçoca, no Salgado Alto, o riacho do Córrego Velho, a lagoa da Santa, e cruzando toda a Ilha Grande. Era uma caminhada até boa pra lá! Era a terceira vez que ele vinha tirar o aposento, e não tinha ainda se acostumado com a rotina mensal de sua atividade. Seu comportamento era meio calado, num bebia, desconfiado, típico do velho que pensa que aquele dinheiro não era para ser seu. Mas, como os outros, a rotina era a mesma: chegava de tardezinha na cidade, ficava por ali até se formar a fila na porta do banco, se assentava em cima de um saco de pano que ele levava pra botar o gênero, respondia um sim ali, um não acolá, comprava uns bulins pra matar a fome, até ir se acostumando com o movimento e passar a noite, a madrugada e, na manhã seguinte, receber seus réis.

        Desta feita, encontrou um amigo seu de infância que há muito não via, o velho Anastácio Pema, e se soltou a falar da vida, relembrar os tempos idos de menino: as pescarias, as farinhadas, as novenas, os namoricos... tudo que lhe vinha na mente destes tempos já rolados. Costumava não beber, mas, desta vez, enfuluído pela conversa, mandou o cacete na pinga, tanto que ficou queimado.  Amanhecendo o dia, como de costume, ainda meio alegre da cana, entrou no banco, recebeu o soldo. Fez as compras básicas sem esquecer seu vício: um fumo de rolo que mascava e fumava; o fumo era caro, pois vinha lá das bandas de Sergipe, passando em lombo de burro e não tinha ninguém que o produzisse na região. Pegou o pedaço do fumo de rolo seco e enfiou no bolso grande da frente da calça, pagou o fornecimento na bodega, despediu-se dos amigos e foi tirando por cima da calçada alta da igreja matriz. Porém, encontrou-se de novo com o Anastacim, que era o nome conhecido de infância do amigo, que estava matando o bicho na quitanda de dona Teca e se envolveram em outra palestra. No meio das palavras, um churrasquinho de tripa de porco pra animar o bucho e um trago da bagageira pra esquentar a goela. Demoraram e foi muito conversando sobre assuntos diversos, pois fazia tempo que não se viam e a noite tinha sido pequena pra tocar em muitas novidades recentes e botar a conversa em dia. E como você sabe, uma prosa puxa outra, que puxa outra, e aí vai... O negócio estava era bom!

          Estava um dia daqueles, frio e sem sol, em que se perde a noção da hora que é uma beleza; assim os dois amigos nem se deram conta do adiantado do tempo. E pro seu Onofre, a viagem de volta pra casa a pé era de mais ou menos quatro horas, avexado. Tinha que caminhar muito e até correr pra chegar em casa antes do pôr-do-sol. Quando se deu de conta do horário adiantado, já eram, mais ou menos, umas quatro horas da tarde; o velhinho se aperreou e se despediu do amigo sem mais delongas, na certa que lhe veria na data entrante do próximo mês. Abarcou seu saco de compras que já havia feito antecipadamente e sapecou a andar na estrada pra fora da cidade, rumo à sua tapera.

         Passos pequenos, mas apressados, daquele corpo franzino faziam chegar na baixa da marizeira com o sol alto. Ele tinha que correr, mas suas forças de velho não dariam cabo desta empreitada. Não adiantava. Era caminhar que, como diz o ditado, quem “corre cansa, mas quem anda, alcança”. Conformado, pois era o jeito, em chegar em casa à noite, foi andando devagar, mas sempre em frente e se aproximando da Ilha Grande com a maré seca e uma pequena vazão d'água no Buraco do Peixe. Subiu as pernas das calças, tirou a camisa de volta-mundo azul escuro, pôs dentro do chapéu, conferiu o fumo, apertando o rolo no bolso da calça, suspendeu o saco e atravessou a pouca água existente no Salgado. O sol já estava só um filete no céu, quando ele passou pelo Córrego Velho.

        Começou mesmo a escurecer geral na passagem da lagoa da Santa que dava pra ilha grande. A Ilha, nestes tempos invernosos, era cortada por vários veios de água formando pequenas lagos e grotas que, às vezes, eram fundas. Era preciso saber e conhecer bem as veredas para entrançar por ali. E tinha ainda o perigo de algum bicho do mato, como onça, cobra ou até jacaré, atacar um desprevenido. Fora outros perigos que eram espalhados pelos mais antigos: que na ilha existia fogo fátuo, sundaro, assombração, alma penada e botija. Corriam também boatos de algum assalto, aqui e acolá, de ciganos ou de algum desconhecido viajante, que se arranchava nos matos pra roubar. Tudo isso passava na cabeça apreensiva do velho Onofre. Porém, como o jeito era esse mesmo, apegou-se no terço de Santa Rita que ele carregava desde meninote, em seu pescoço e, sempre caminhando, foi achando as veredas e encurtando o caminho de casa.

          Quando chegou no descampado, como na confrontura de cem metros, tinha um pé velho de maçaranduba grande, que de longe se via sua sombra parca, na penumbra da noite. A noite estava escura, mas, no descampado, dava pra ver aquela penumbra escura do vulto das plantas maiores. O velho veio caminhando lento, ao se aproximar da árvore velha com um passo meio agachado, que era seu andar característico. Foi se aproximando da maçarandubeira já quase fazendo a curva pra sair na grota nova quando um vulto ligeiro se aproximou dele e lhe abordou:

         - Ou a vida, ou o que leva! - gritou o vulto de um caboclo grosso, entroncado, baixo e rude, sem camisa e com uma peixeira empunhada a uns dois metros do velho, apresentando o assalto.

       Estava feita a desgraça! - pensou seu Onofre no aperreio. Ele desarmado, sem ação, sozinho... o jeito era entregar o ouro; e o ouro era seu meio rolo de fumo arapiraca da melhor qualidade, que ele havia comprado caro, pra dar suas fumaçadas e suas cuspidas de masca. Não tinha mesmo outra maneira. Meteu a mão no bolso e puxou rapidamente o chumaço preto pra entregar ao desconhecido, direcionando-lhe o fumo de rolo que era seu maior valor. Nisso, o gatuno se espantou com a ação inesperada do velho no escuro, que lhe apontava o fumo preto, pensou que fosse um revólver e, com um rápido movimento, disparou-se sumindo na noite adentro, da mesma forma que tinha aparecido. 

      Seu Onofre ficou, por alguns poucos instantes, paralisado, sem entender o que tinha se passado. Depois que se viu aliviado da ameaça, rumou sem olhar pra trás, em desabalada carreira, como davam suas pernas de velho, e jurou nunca mais andar sozinho à noite por aquelas paragens. Até hoje ele agradece a Deus, a Santa Rita, de quem é devoto, e àquele rolo de fumo que, por ter sido confundido por uma arma de fogo em sua mão, salvou sua vida.

 

Vocabulário:

 

birita – o mesmo que pinga, cachaça, bebida alcoólica da cana-de-açúcar.

‘queimar o dente’ – expressão popular que significa tomar um trago de cachaça.

mamata – dinheiro fácil, conseguido sem muito trabalho.

mucheia – expressão aglutinada variante de “mão cheia”.

fiados – forma de negociação em que o comerciante vende o produto por confiança ao comprador.

entertiam – palavra variante de “entretinham”, verbo entreter.

parença – o mesmo que aparência, se parecer com.

bulins – tipo de bolacha doce feita de goma de mandioca.

réis – espécie de dinheiro antigo que vigorava no passado e que os mais velhos continuavam usando no presente.

enfuluído – termo oral para influído, animado, alegre.

‘mandou o cacete’ – expressão popular que quer dizer ação de fazer algo de forma exagerada.

queimado – termo que indica aquele que bebe álcool, quase embriagado.

camisa de volta-mundo – tipo de camisa de tecido fino e transparente usado no passado.

sundaro – o mesmo que Sudário, lenda popular corrente de um fogo que aparece pras pessoas em lugares isolados e escuros.

confrontura – significa em determinada altura, próximo a.

fumo Arapiraca – conhecido fumo de rolo vendido antigamente usado para mascar e fumar.

masca – ação do vício de mascar, mastigar o fumo.

   Jacozim, pé de molambo

 

  Dizem que nos tempos idos, todos nas vilas e povoados se conheciam, inclusive pelo nome, os nomes dos pais, dos parentes e aderentes. Era tanta a familiaridade que, se alguém deixasse o rastro de seus pés, havia aqueles que os reconheciam com certeza absoluta, servindo até de prova cabal na justiça. Como naquele tempo, sapato, sandália e alpragata era coisa de rico... as pessoas andavam todas mesmo era descalças, de pé no chão. Ora, se todos eram conhecidos, então ficava muito difícil alguém fazer algo errado, pois era logo descoberto pelo modelo do seu pé.

     Foi então que Jacob, que não era flor que se cheirasse, filho do finado Quintero, da Várzea Grande, lá pros lados do Tuncunzeiro, inventou um meio de enganar os ledores de pé. Jacob era amigo do alheio, foi criado com avó e, desde sua infância, tinha treinado muito roubando frutas no quintal de dona Marocas. Ele também já tinha passado diversas vezes na vazante de seu Titico e do Zé Bicudo e tinha raspado tudo por lá. Sem contar as vezes que ele aplicava o famoso descuido na banca do seu Elias. Era mesmo gatuno este Jacob. Tanto aparecia coisas na casa dele como na da avó dele. Não podia ver nada que já estava levando. Não interessava o que fosse. Se ele desse de furtar, o bicho ruim, afanava. Parece que tinha coceira nas mãos.

     E o pior era as desculpas dadas: as mais furadas; certa vez ele afanou a bicicleta do Pedim da Loja. Enquanto o Pedim subiu a calçada da casa dele, entrou com um quilo de costela gorda pra fazer um escaldado e entregava pra mulher na cozinha, o maldito sapecou o pé na carreira com a bicha no ombro, correndo mais do que rato que foge de gato preto. Foi um aperreio grande na Cruz Alta. Procuraram por toda redondeza, dentro dos matos, na ponte velha, na ingazeira, no rio de cima, dentro da lagoa doce; mas nada. A bicha se encantou!

    Até que se lembraram do seu Nicolau, o maior ledor de rastros da região, que fez uma investigação e, seguindo os palmos dos pés do larápio, chegou na casa do Jacozim. Chegando lá, ele estava assobiando no alpendre, como quem de nada sabe, inocente como ele só. Perguntaram pra ele, como quem não quer nada, cercando pelas beiradas, até que apertaram o mói de chifres, partindo pra violência mesmo, que ele secundou:

    - Tá ali no paiol da Vô Quindinha. Era pra eu entregar, mas parece que me esqueci...

Indagado pelo Pedim, qual era o motivo do roubo, ele se saiu com essa:   

    - Nera roubo, não... Só levei pra mode dar uma voltinha!

    O bicho era escorregadio. Mas o pior é que ninguém delatava o malfeitor e ficava por isso mesmo. Sabe como é, neto criado com avó: foi levando no pagode e, quando se viu, o Jacozim estava que uma catita que não tem medo de ratoeira.

    Uma vez ele escapou de uma boa: numa noite de lua cheia, estava aquela claridade que se enxergava até agulha no palheiro, e o Jacozim deu de passear a noite. Seu Nenem Didé, que não era besta nem nada, quando viu o vulto do Jacob passando pros lado das suas bananeiras que estavam no ponto de apanha, raspou seu jacá e uma corda de couro de boi, e chinelou atrás do malvado. Quando deu fé, só se viu as pancadas nas bananeiras que os cachos se espatifavam no chão. Seu Nenem pegou o jacá e o relho e rumou pro meio da plantação.              

    Quando emparelhou com o ladrão, não contou pipocas! Foi metendo relho nas costas do amaldiçoado que ele saltou de banda. Ele plantou chibata pra cima que a desgraça não teve jeito senão reclamar:

     - Que é isso, seu Nenem? Só tava dando uma cagada detrás das plantas...

   Mas seu Didé já tinha segurado o rato pelas bitacas e não queria nem saber de conversa fiada. Foi logo rendendo e amarrando o larápio num tronco de cajueiro velho no terreno. A raiva do seu Nenem era muita que ele não ia dispensar uma pisa de relho de boi no lombo do amigo do alheio. Ele deu umas cinco chicotadas pra começar os trabalhos. Mas o bom mesmo estava por vir: quando ele pegasse o jacá que era muito mais pesado e doía pra moléstia! Foi aí que a sorte do Jacozim virou. Quando o jacá ia comer, apareceu Nana e Candinha, ambas filha e mulher de seu Nenem, que chamaram os homens na bodega do compadre Sentu, uns cem e cinquenta metros dali, e salvaram a pele do pelintra. Ô cabra de sorte este Jacozim!

    Quando ninguém lhe pegava, ou o roubo era pequeno, não valia a pena, ficava tudo por isso mesmo. Não podia aparecer nada de novo na vila, que Jacozim dava uma olhadela de rabo de olho, saía de fininho, e depois vinha buscar. Quanto mais aparecesse, mais ele roubava. O disgramado não tinha jeito. Era um poço sem fundo. Roubava de tudo! Escondia o roubo tão bem escondido que infeliz nenhum achava. Era escondedor pra danar! O diabo enterrava o roubo, espalhava debaixo das coivaras, nas cascas de feijão do paiou, trançava por dentro das moitas, escondia até em cima da casa, no flexal, em qualquer lugar, ele desaparecia com a peça.

     O pessoal já estava tudo precavido com o Jacozim. Quando ele passava pra vazante, lá estava alguém atrás avisando:

        - Se avexe, que o dimuin passou por aqui há pouco...

    Todo mundo se cuidava, e ele num roubava nada. Quando ele ia pro mercado, do mesmo jeito. Quando ele passava pra feira, a mesma coisa. Foi assim que o pessoal viu um jeito de neutralizar a ação do larápio. Mas mesmo assim, como não havia um vigia pra ficar sempre atrás dele, um pequeno descuido, até na cuia de esmolas do ceguinho da esquina, o Jacob agia e levava tudo. Contudo, já estava ficando meio difícil pra profissão deste desocupado!

     Outro que andava léguas pra descobrir os roubos do Jacozim era seu Nicolau. Achava bom demais ir seguindo os rastros do malino e sentia prazer em desmascarar o agiota. Tanto ele roubasse, na calada da noite, quanto quando era de manhã cedinho, estava lá na sua porta seu Nicolau conferindo seu rastro e resgatando o produto roubado. Estava mesmo difícil pra profissão do Jacozim!

    Mas o endiabrado não deixava por menos e fazia todo tipo de garatuja pra despistar seu Nicolau. Uma vez Jacozim roubou uma galinha assada da panela de dona Mariquinha e foi de costas despistando a direção das pegadas pra casa do Pitoco. Passou pelos pés de tucunzeiros, saiu dentro do corrégo e correu pra casa. Mas não deu jeito! Seu Nicolau reconheceu as pisadas e entendeu a maracutaia e, de novo, pegou Jacob.

    Dizem que mente desocupada é a escola do demo: o pivete inventou uma muito pior. Foi aí que ele teve a ideia de enrolar os pés nuns panos velhos que sua vô guardava pra fazer trapo e acender o fogão a lenha em dia de chuva. Enrolou bem enrolado os dois pés como se fosse uma bota e começou a andar nas veredas por trás da casa dele, pra testar sua nova invenção. Olhou os rastros das botas de molambo e viu que não tinha como seu Nicolau reconhecer suas pegadas. Correu, saltou, se abaixou, caminhou e viu que, de nenhum modo, dava pra saber, pelo modelo dos pés enrolados no pano, o autor das pisadas. Foi então que Jacob planejou bem, pra testar na prática, seu invento: já fazia uns oito meses que não agia. Ele estava se coçando pra fazer uma paradinha! Mas não podia arriscar...

     Ele estava dando uma de arrependido e de recuperado. Olhava pras coisas no mercado e não mexia em nada. Até seu Nicolau armou uma arapuca pra pegar ele com uma nota alta de dinheiro e ele não caiu. Todo mundo na vila pensava que ele estivesse recuperado. Começou a trabalhar na lida: apanhar feijão, quebrar milho, fazer arranca de roça... É! Parecia mesmo que o endiabrado tinha se transformado em anjo. Até a filha do tio Totonho estava querendo se achegar nas peneiradas de goma da casa de farinha... chegavam a se rir pensando em namoro.

     Mas tudo ainda estava por vir. Jacozim queria mesmo era voltar a sua atividade preferida. Porém, ele tinha que fazer o serviço bem feito! Começou numa quarta-feira de noite, roubando ele mesmo, pra ninguém desconfiar de sua recuperação.

    Todos já estavam curtindo a tranquilidade da vila, sem roubo nem nada, quando Jacozim entrou berrando na casa de farinha de sa Manica e contando, com detalhes, o roubo da sua socadeira de chumbo. Chamou até seu Nicolau pra vir olhar as pegadas do larápio. Quando seu Nicolau chegou e olhou a arrumação, ficou espantado com as pisadas: não só não sabia quem era, como ficou pensando que fosse coisa de outro mundo.

     - Eu nunca vi coisa como esta! Pra mim é de assombração pra lá... num tem pé de gente, nem de bicho!

    E foi se espalhando a história de alma penada, que só melhorava pro lado do ladrão. O povo, com medo, deixava era as portas das casas abertas pros espíritos apenados saírem e o Jacozim só lucrando com essa situação. Pra trazer mais medo à negrada, ele começou também a usar um lençol branco e correr com seus pés de molambo pelo meio da noite, pintando e bordando, sem ser incomodado por ninguém.

    Essa história de alma penada correu mundo, nas vilas, povoados e cidades próximas. Não tinha quem não soubesse e espalhasse aumentando ainda mais a história cabeluda. Já fazia dois anos e meio que o ladrão do além roubava e espantava meio mundo de gente e ninguém tinha nem coragem de averiguar. Dizem que até um tenente, vindo da cidade, 'abriu' e se borrou com a história. Não adiantava de nada! Até missa o vigário já tinha rezado pedindo a Deus o desterro da assombração, e os roubos não diminuíam. E o Jacob? Era o primeiro a ser chamado pra ouvir as histórias no dia seguinte ao roubo; não havia a menor sombra de desconfiança da população local. Ele continuou agindo como vítima e tudo corria às mil maravilhas... Todos achavam que ele era mais um desafortunado nesta história. Entretanto, como seguro morreu de velho, ele continuava agindo com muito cuidado, sem dar pistas de suas saídas e chegadas.

     O único a duvidar desta história de alma, de assombração, de espírito desencarnado, era seu Nenem Didé; pois o ousado estava tão confiante do seu disfarce que entendeu de ir furtar logo na casa do homem.

    É, como se diz: nada é tão escondido que não possa ser descoberto. Numa certa noite meio enluarada, Jacozim estava usando seu traje costumeiro de alma penada quando se encaminhou pro chiqueiro dos leitões do seu Didé. Seu Nenem, que tava já meio cismado com esse papo de alma ladrona, de espírito furtador, quando ouviu o barulho dos bacurotes no chiqueiro, já saiu de cartucheira carregada na mão. Duns vinte metros, viu um vulto de branco, que parecia estar querendo pegar os bichos. Engatilhou a cartucheira, pediu forças a Deus e gritou:

      - Alma do satanás, se tu é deste mundo, agora tu vai pro outro, miserave!

Jacozim, quando viu a arma em punho, se lembrou da surra que tinha levado, da vez passada, do seu Didé; tentou correr, mas as pernas não obedeceram. Tentou gritar, mas sua voz não saiu. O jeito mesmo foi se borrar todo nas calças e entregar o jogo. Mas como o malandro não sai sem as suas, ainda acabou falando:

       - Seu Didé, eu vim fantasiado de alma, pra mode nós pegar a condenada...

    - Ah, foi, é... - disse seu Didé enraivecido, que não era besta em acreditar em tal lorota. - Pois pode se aprontar, que aquele jucá hoje trabalha... - e mandou “pea no caboco véi” que até hoje ele num quer nem ouvir falar de alma ladrona e nem de pé de molambo.

      E assim findou-se a história do Jacozim, o pé de molambo.

    CACHORRO DOIDO

 

         Nas regiões do interior, antigamente, não havia luz elétrica, quase não havia casas perto umas das outras. Por isso, quando a noite chegava, o escuro e o medo do desconhecido eram palco de diversas histórias reais ou imaginadas, que se espalhavam, contadas por pessoas que, por não ter muito assunto, ou por que gostavam mesmo de conversar sobre esses fatos, inventavam, aumentavam e, de qualquer jeito, divulgavam as conversas mais cabeludas. O pior é que tinha gente que jurava de pé junto como aquilo era verdade, e pra aquelas pessoas medrosas e de mente fraca, tudo que era contado era considerado verídico. Então, pra aumentar o medo dos de pouca coragem, tinha ainda aquelas palestras dos contadores de causos, que misturavam todas as histórias folclóricas e lendas conhecidas pra amedrontar ainda mais os coitados.

         Tal crédito passava de boca em boca, gerando ainda mais crença e quando dos deslocamentos noturnos habituais, - pra ir a uma missa, uma novena, um velório, uma farinhada, uma pescaria, uma simples visita à noite, pra ver um parente - havia receio de andar sozinho por parte dos menos encorajados. Tinha gente que, por medo ou alguma coisa que o valha, não saía de sua casa à noite, nem pra tirar o pai da forca. Quando escurecia, se fechava dentro de casa, aferrolhava as portas e janelas e acendia todos os candeeiros pra fugir do escuro. Tinha alguns que, numa simples olhadela pro escuro, já estava vendo vultos, visões, visagens, bichos e coisas desta monta.

       Conta-se um fato de um rapazote conhecido como Zenune, que era um destes: quando a noite batia, se ele tivesse em visita, tinha que dormir na casa alheia, porque não conseguia passar do terreiro, com medo. Nem dormir, ele dormia se não fosse com a lamparina acesa próxima à sua rede. O homem era medroso demais! Até os irmãos dele reclamavam e queriam apelidá-lo de “flor-flor”, pois isso não era papel de homem macho. Onde já se viu, o cabra ter medo da própria sombra!

           Porém, Zenune era macho sim, senhor. E, pra provar isso, ele inventou um namorico com a Beloca, filha mais velha da dona Belê e de seu Canô. Aos domingos, se encontravam na igreja, na missa das nove ou nas novenas pela manhã; se viam na tertúlia da tarde, na casa da Osmarina; às vezes, iam ao drama do seu Caboquim, que era à tardinha; mas, quando ia escurecendo, tinha jeito não: o caboclo metia o pé no rumo de casa. Era igual à história da Cinderela quando chegava à meia-noite. Ninguém sabia destes seus medos, exceto os seus familiares, e a Beloca não podia nem sonhar com essa história. Era vergonha na certa! Talvez até acabasse o namoro se ela fosse informada desse seu defeito.

          Então, o brochote tentava ajeitar de todo jeito, inventando histórias pra não ir lá na sua casa de Beloca à noite. Era que tinha que trabalhar na Várzea Grande e era longe, que tinha de descansar; era que estava com os olhos remelentos e num podia apurar a vista de noite; era que ia chover grosso no Boquerão e a grota podia encher na passagem do despejo; era que tinha que debulhar feijão em casa até a madrugada; era conversa pra mais de metro, que ele inventava pra mode não se encontrar com a tal da moça à noite.

       No começo, ela nem desconfiava e engolia os fatos calada. Mas depois, quando viu que eles nunca tinham se visto à noite, começou a achar estranho e desconfiar que tivesse alguma coisa errada. Logo, veio aquela desconfiança que toda mulher tem à primeira vista: de que ele pudesse ter outra às escondidas, indo visitá-la na calada da noite. Por isso ela lhe exigiu uma prova cabal, pedindo pra ele comparecer, pelo menos uma vez por outra, em sua casa, à noite. Coitado do medroso! Estava mesmo ferrado: se não fosse, Beloca ia pensar que ele realmente tinha outra e acabava o namoro com ele; se fosse, ela ia descobrir seu segredo de covardia e ele ia ser motivo de chacota da população local. Era o jeito ele ir: tinha que provar que ele gostava dela e não tinha ninguém mais. Puxou uma coragenzinha lá do fundo do peito e resolveu ir.

          Passou a semana sem pensar na empreitada. Não queria dar pra trás... Era a melhor maneira de não se lembrar do que ele ia passar. A semana correu rápido, e logo chegou o sábado, justamente o dia, ou melhor, a noite, que ele ia ter que ir na casa da namorada. Ele até que parecia estar com coragem. Arrumou-se à tardinha, perfumou-se, pensando somente em Beloca e rumou a cavalo, pra casa de seus pais.    

           Acho que não preciso explicar como era o namoro de antigamente, né? Era assim: os namorados sentados em um banco na sala, um perto do outro, com a distância de meio metro. O pai, ou a mãe, ou um irmão mais velho sentado do lado, observando toda ação do casal. Ah, ia me esquecendo: não tinha escondidinho ou escurinho, não... Era no clarão do candeeiro mais forte. O que os pombinhos podiam fazer, no máximo, era pegar na mão um do outro, e quando já estivessem comprometidos.

        Pois foi assim que o nosso amigo Zenune passou todo este perrengue. Chegou ainda dia meio claro na casa da Bel, apeou do cavalo e amarrou no mourão da frente da casa. De longe, já viu sua amada na janela, sorrindo pra ele como quem dissesse, “Oh, meu amor, corajoso!” Caminhou pra calçada e entrou no alpendre grande, que dava pra sala da casa. Aproximou-se da porta, saudou respeitosamente seus pais e deu 'boa noite' pros cunhados que se encontravam na sala. Beloca já estava toda arrumada e seu rosto era um riso só. Falou também com ela e admirou sua roupa e seu perfume, só no pensamento. Como ainda era cedo, dona Belê lhe ofereceu um café com pamonha, que Bel lhe trouxe ali mesmo, ainda no alpendre. Ele comeu devagarzinho, para mostrar educação, finalizou a refeição sem deixar restos e agradeceu novamente. No sertão, é assim: é educado quem aceita sempre a comida e raspa tudo. Se o cabra deixar resto, quer dizer que não gostou do preparado.

            Depois que Beloca voltou de dentro, seu Canô preparou o banco na sala, acendeu um lampião grande e o pendurou perto de onde ficaria sentado o casal. Encaminhou-se pra porta, chamou Zenune e pediu pra entrar e sentar no banco. Depois, veio a Bel com um sorriso nos lábios, meio envergonhada e se assentou ao lado dele, resguardando uma boa distância – cada qual na ponta do banco. Eles se olharam, se riram um risinho de canto de boca, meio desajeitado e ficaram por um tempo assim, sem se dirigir palavras. Até que Beloca, olhando pra ele meio acabrunhada, pergunta-lhe se quer água e ele aceita. Ela se levanta, vai pegar seu caneco de água de alumínio novo, enfia no pote e traz a água bem geladinha do fundo, com aquele gostinho bom de barro queimado. Ele bebe que escorre água pelo canto da boca. Em seguida, limpa com a manga comprida da camisa e ficam neste silêncio de boca, que diz com os olhos mais que mil palavras.

            E assim vai a boca da noite, com já tudo escurecido, ele lá entertido com a moça, apaixonado que parecia nem querer saber de medo de escuro. Ademais, ele estava dentro de casa, na claridade do lampião mais forte da casa, cercado da morena que nem menino com brinquedo novo, tanto que ele nem pensava em pensamento ruim. Dona Belê, às vezes, tempera garganta, fazendo seu ponto de crochê numa cadeira a uns três metros, enquanto seu Canô prepara um pé duro de fumo de rolo, deitado num tucum, do outro lado da sala.

        A noite passava rápido pro casal, que ali enamorado, não via as horas avançarem. No campo, se dorme cedo e pela manhã se acorda também cedo pra lida. Embora o dia seguinte fosse dia santo, mas o hábito não ficava descuidado. É quando o velho respira mais fundo, demonstrando impaciência, que é o sinal pro encontro terminar. É justamente aí que o rapaz se toca do horário e também da empreitada que terá que seguir na noite escura, no caminho de casa. Neste momento, eles ficam de pé, já nos finalmente, Beloca toca nas suas mãos, que estão muito frias de medo. Ela estranha um pouco, pergunta se ele está se sentindo bem e ele se sai como que se estivesse nervoso com o encontro. Despedidas finais da moça e dos pais, lembrança pra família e o ‘boa noite’ final.

        É então que o rapazote se encaminha para fora, para o alpendre e vê claramente o escuro que faz aquela noite. Aquilo lhe causa arrepios! Ele fica parado, sem querer sair e a moça interpreta a pequena demora como uma carícia, um quero-mais; mas a verdade dentro de si é catastrófica. Não há o que fazer: o certo é sair e enfrentar o perigo. Então, ele cria coragem quase que fechando os olhos, marcha para fora de uma só vez, sai da segurança da casa, passa pelo alpendre e vai até o terreiro pegar o arreio do cavalo. O cavalo está ofegante e o clima parece meio abafado. Zenune, ainda paralisado por dentro, sobi-se no cavalo, faz um gesto mudo de despedida para a namorada e dá marcha à montaria.     

           A pressa é a forma mais rápida de chegar em casa. Já que tem que ir, que vá a galope pra chegar em casa logo e não se expor aos perigos da noite. O cavalo é novo e fogoso, salta rápido nas estradas estreitas e veredas que compõem a via de casa. O rapazola se segura assustado na montaria, a cada sombra que por ele passa na cavalgada. Ele tenta não olhar fixamente pra nada, pra que sua mente medrosa não invente bichos, monstros e fantasmas das manchas escuras das árvores e das sombras. Tenta olhar apenas pra cabeça do animal, que está ali mais perto de sua visão, que é o ponto seguro. Mas sua imaginação é que lhe põe a perder: vêm em sua cabeça histórias antigas de malassombros que, desde menino novo, povoam sua mente. Conversas recentes de cachorros endiabrados, que andam em bandos e que foram vistos por algum transeunte nestes dias, vêm à tona. Sempre foi um grande mito a história do cachorro doido, que sai pelo mundo mordendo gente e se transformando em lobisomem. Suas vítimas também sofrem essa mesma metamorfose ou viram zumbis. Pobre Zenune! Tinha tamanho de gente grande, mas sua imaginação era como se fosse de uma criança.  

        A estrada é um pouco longa e cheia de curvas e silhuetas, de modo que, para o moço, torna-se uma eternidade chegar em casa. Os barulhos dos bichos da noite e dos cascos do próprio cavalo produzem em sua cabeça uma série de imagens assombrosas. Ele maximiza esses sons noturnos como se milhares de coisas assombradas o seguissem. De maneira alguma, ele olhava pra trás, temendo tais figuras. Mas, com tudo isso, ele se mantinha bem em cima do cavalo, galopando “de vento em polpa”, para chegar na segurança do seu lar. Seu maior medo era passar em frente à casa do finado Dodô, um velho que tinha morrido há uns dez anos, pois diziam que, à noite, o espírito dele voltava pra passar a noite pela casa. Gente já havia visto luzes acesas e barulhos de móveis dentro da casa e vozes familiares que vinham daquelas bandas.

          Quando ele fez a curva e desceu a ladeira do despejo - um sangradouro da lagoa que sempre tinha água - o cavalo, que já vinha cansado, fez um bufado, respirou feio e freou seus cascos na beira d’água. Zenune, já apavorado, deu com as rédeas do bicho, esporou e chicoteou o equino pra atravessar a passagem molhada no galope. O bicho, aparentemente, estava anestesiado e não atendia a seus comandos.

           O cavalo já vinha estranho, como quem pressente algo errado, e ficou mais ainda quando foi pra subir o alto que passava em frente do casarão do velho Dodô. Não dava pra desviar, pois não havia desvio. Aquele era o único caminho pra sua casa e ele tinha que passar pela frente da casa malassombrada. Quando se aproximava uns cem metros dos bejaminzeiros que havia em frente da construção, ouviu um barulho nítido de um latido canino grosso e estridente. O cavalo também se assustou um pouco e diminuiu ainda mais a marcha.

         O rapaz já pensou na conversa do cachorro doido, que podia estar rodeando a redondeza, e quase que ficou paralisado. Um vento frio subiu pela espinha, ele não teve mais ação de guiar o cavalo, e o bicho seguiu andando em marcha lenta. Zenune ficou cada vez mais aperreado quando viu, de longe, a casa com luzes acesas lá dentro, e escutou outro latido cada vez mais próximo. Foi aí que, bem em frente do casarão abandonado, seus próprios olhos viram a figura mais estranha do mundo: um cão preto enorme, com olhos que brilhavam como o fogo, de uns dois metros de altura por uns três e meio de comprimento, latindo ferozmente em sua direção.

       Aquela figura diabólica só poderia ter vindo das profundezas, junto com as almas dos defuntos, lá dentro do casarão. O cavalo, cansado e assustado, não tinha disposição pra correr, e o pobre do Zenune, com o susto, se mijou e se cagou, com o corpo paralisado de medo, e nada pôde fazer. Deus é que guiou os dois estrada abaixo, pro beco da estrada nova até chegar em casa.

     Chegando no terreiro, respirou aliviado, fez o ‘pelo sinal’ três vezes, sem alarde, pra não acordar seus familiares - que, na certa, já estavam dormindo no terceiro sono - e desmontou do cavalo. Ainda anestesiado de medo, olhou o bicho e se beliscou pra ver se estavam ainda vivos. Acendeu o lampião do alpendre, enquanto se acalmava e averiguou, mais uma vez, a montaria pra tirar os arreios. Foi botar o cavalo no cercado da frente, ainda apreensivo, mas agora um pouco mais tranquilo, pois, afinal, já estava em casa. Terminou o serviço, pegou o lampião aceso, deu dois toques leves na porta da frente, que era o código para os de casa. Voltou a repetir os toques, quando alguém falou lá de dentro:

              - Já vai...

            Esperou ainda apreensivo uns poucos segundos, foi quando seu irmão Doquim abriu a porta se espreguiçando e bocejando, viu seus cabelos arrepiados, aquele suor frio na testa, estranhou seu modo de andar e perguntou:

              - Que cara é essa? Parece que viu assombração...

            Zenune estava pálido e suado, além de sujo com as necessidades que ele tinha feito. Ele estava doido pra contar a novidade, porém já conhecia seu irmão e sabia que, no outro dia, a história estaria na boca do povo e que poderia chegar até a Beloca e, assim, ele ia estar difamado. Ainda com o coração batendo a mil, reservou-se, controlou-se, como se nada demais tivesse acontecido. Apenas respondeu mais tranquilo e aliviado, escondendo as peripécias que acabara de passar:

              - Nada, não! É a noite que tá quente, mermo... Acho até que vou tomar um banho!

              Entrou com o lampião levantado na mão direita, foi na coxia, pegou a toalha e seu pijama e se encaminhou pro banheiro, nos fundos da casa. Asseou-se, lavou as roupas sujas, vestiu-se e veio deitar-se na rede, tentando transparecer a normalidade de sempre. A agitação do corpo e da mente, a perturbação daquelas figuras estavam muito nítidas e não deixavam cochilar muito bem. O tempo foi passando, até que dormiu, teve pesadelos, mas se aquietou de vez...

 

           No outro dia pela manhã, domingo, dia santo, acordou um pouco ressaqueado da noite atordoada, porém Zenune fingiu-se calmo. Foi o último a acordar na casa. Todos já tinham tomado seu café e sua mãe lhe chamava pra a refeição matinal. Levantou e fez seu asseio. Sentou-se à mesa, na cozinha e ouviu um comentário de sua mãe:

              - Sabe o Brígido, filho do finado Dodó, que mora na capitá? Chegou onte anoitinha, e tá arranchado lá no casarão do veí... Diz o Diassis, que trouxe cum ele um cachorro, tal de pastor alemão, que é preto, do tamanho do cão e mais brabo que o diabo!  

             Zenune, que já estava ficando assustado, quase se entala com o grolado. Tomou um gole de café com leite, engoliu bem e ficou pensativo. Foi aí que ele começou a compreender toda a lorota que seu medo lhe fez passar na noite anterior.

 

 

Vocabulário:

 

brochote – vocábulo que significa rapazote, pixote, rapaz jovem.

pra mode – expressão regionalista que dar ideia de finalidade.

cabra – termo chulo regional que quer dizer caboclo, homem.

entertido – palavra variante de “entretido”.

tucum – rede muito popular feita de embiras da palha da carnaúba que serve para deitar.

malassombros – assombrado, atormentado.

benjaminzeiros – pés de plantas de benjamim.

aperreado – o mesmo que apressado, intranquilo.

grolado – mexido de goma ou massa de mandioca misturado com coco geralmente comido com café ou leite.

 

 

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